terça-feira, 1 de julho de 2008

Caralhamba

(Texto para um concurso da revista piauí, tal qual o em "Os arpejos de mamãe...". A frase proposta desse eu digo ao final, para que não se condicione a caçá-la.)

“Som, ei, som”. Um estampido oco sai da caixa de som mais à direita. “Som, ei, ei. Marquinho, você escuta daí?”. Microfonia, caretas, nova microfonia.

Era um leilão dessa vez. Leilãozinho na verdade, e de mentirinha para ser mais exato. Marcos – o Marquinho ao qual se referiu o senhor que faria as vezes de leiloeiro, seu pai – cuidava da mesa de som, que emprestara para a festinha no colégio da irmã. Certamente esse seria o pior negócio do mês. O aluguel da aparelhagem, por ordem da mãe, teria preço tão simbólico que realmente parecia um empréstimo; um empréstimo a troco de fatias de bolo, refrigerante e salgadinhos. “Queria ser caçula”, repetia mentalmente sempre que se via refém das vontades da coisinha-linda-do-papai. Papai este agora bravo ao microfone: “Marquinho, dá pra ouvir ou não dá, porr...”. Percebendo a tempo o xingamento descabido para a faixa etária local, ensaiou uma mudança brusca: “...rawl, rau, raô, a-ô, som. Ei, som”. Baixou os olhos abanando a cabeça com um riso contido enquanto recebia a resposta afirmativa do filho, que erguia os dois polegares para o alto e sorria largo, apreciando a gafe disfarçada com maestria. “Aprende, filhão”, sussurrou o pai; não mais disfarçava o sorriso, mostrando dentição igual a de Marcos. Toda a excitação do pai o fazia lembrar um amigo que imitava muito bem um leiloeiro de gado de um canal na tv; nada elogioso, fazia mais por chacota.

Na verdade, ele implicava com leiloeiros; apreciava mais os falsários e tinha lá seus motivos. Contara para Marcos certa vez a sua versão de um ocorrido um tanto constrangedor - coisa besta, mas que teve repercussão na imprensa local e quase intervenção da polícia. O pai e o tio do rapaz estiveram envolvidos com o lado criminoso da história, que combinava intrigas pessoais, relógios coreanos e um pai de santo mal-intencionado. Os acontecimentos eram confusos, mas ficava clara a não inocência dos dois. Mesmo assim, o amigo tendenciosamente os defendia e...

A lembrança lhe foi quebrada pela tosca imagem de uma menina tentando matar outra lhe puxando os cabelos. Apressou-se tomado pelo susto de reconhecer a própria irmã na cabeça que balançava de um lado para o outro, guiada pelas mãos vorazes da amiguinha. Num tabefe rápido – ao estilo “pedala” – e com uma puxadinha de cabelo que ergueu a cabeça da agressora, conseguiu a distração que queria para arrancar a pequenina vítima do perigo. Por sorte, nenhuma mãe percebeu aquele bravo irmão em ação; se muito, viram apenas o rapaz da mesa de som com pressa carregando um pacote todo assanhado no colo.

Passado o susto, a paz; criança se distrai fácil. Após o arremate do último item, o pai de Marcos, ainda empolgado com o próprio desempenho, apontando para o filho e sem se desfazer da voz empostada, sentenciou o início da festinha: “Solta o som Dj!”. Ao se virar para sair de cena, tropeçou no cabo do microfone e proferiu uma segunda sentença: “Caralh...”. Essa não deu para disfarçar. Todo mundo percebeu.

Caralhamba” não existe.


(A frase era "ele implicava com leiloeiros; apreciava mais os
falsários".)

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