quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Um fiapo bastaria

Vovó fez panos de cama para mim e meu irmão. Bege, quase todinho bege, porque há bolotas coloridas dispersas, poucas. As bolotas coloridas são retalhos de um lençol antigo de que me lembro bem. Era fininho e sedoso de um jeito que só lembrar é como sentir. Passo a mão por elas e o vejo reconstruído à minha frente ou em meu redor.

Em geral, resgata-se da memória, como duma colcha de retalhos, o registro fragmentado que um objeto qualquer nos obriga a revisitar. Vovó presenteou-me com poética: o objeto, este sim colcha de retalhos, remonta em mim inteiriça lembrança.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Para num domingo

Domingo a se desenrolar ou já todo esticado? Ainda enrolado estou eu nos meus lençóis. 'Vai dar tempo?'. Essa pergunta me vem e eu a interpreto como aquela outra, 'Vai dar samba?'. Se o tempo não para, ninguém nunca domou a fera, é certo que vai: tempo sempre há. Meu engano me conforta. Estico-me, enrolo-me, fecho os olhos. Vai dar samba.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Duas vezes o mesmo assunto

Duas perguntas me engasgam. Apertam-me o pescoço, uma de cada lado, em xis: como tesoura que, num outro plano, sou eu mesmo quem manuseia; para ferir ou para ameaçar; já quase me enxergo, e sinto às vezes que sim, que me vejo, de frente, aproximando o polegar ao indicador, os dois enfiados nos círculos errados do cabo da tesoura, porque sou canhoto. É tesoura, mas bem poderiam ser lanças e mais lanças e espadas e adagas de interrogações tantas que me afligem; mas não, é tesoura, pois que são duas somente: das perguntas laminadas, interrogações tantas, escrevi, sobraram-me os furos, os cortes, os arranhões, as marcas e as cicatrizes; destas duas não, sou Prometeu acorrentado, sinto-as sempre; às vezes, só muito de leve é que me tocam, uma de cada lado do pescoço, pouco as sinto, mas arde-me o vinco - pouco sentir não é não sentir, ardor também é dor; às vezes, tão apertado elas me engravatam, que me beliscam o gogó.

As perguntas são "para quê?" e "para quem?". E um mundo inteiro parece se fazer abrir ao mesmo tempo que se encerra em si mesmo. Falar de amor não é amar. As coisas não poderiam estar mais claras agora. Acabei.

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Quando esqueço que escrevo por exercício, percebo que substituída é a pergunta por que escrever por para quem escrevo, e me vejo muito 'eu', com nome, personagem de situações; lugares que de fato existem, meu deus, há outros seres lá!, como dizê-lo? De maneira muito incerta falo por mim: muito me parece errado então falar aqui a voz que não me pertence, como se minha fosse a voz que aqui se faz.

Um dia lerei tudo novamente e não sei: não mais saberei ler estes dias escritos, ou ao ler, novamente estarei a escrever? Novamente? (Alguém que não eu conseguiria dar forma, nova voz ao que escrevo? Pelo jeito, a pergunta sempre é "para quem".)