quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Diário

Vou manter um diário. Bem, quero. A exemplo de todo o resto, meu passado denuncia, não vai ser das tarefas mais fáceis. Mas é necessário, por mais desacreditado que eu agora esteja. A escrita, enquanto ofício - e, no fundo e na superfície, até já soltei para uns mais chegados e outros não, almejo o estrelato literário (e que mesquinho isso soa, além de ingênuo) -, não é diferente das outras carreiras ou planos ou projetos, falta-me precisão com as palavras agora, mas não é diferente. Exercício (escrevi "Ecervívio", digitando sem olhar), necessita exercício (dessa vez, "exerc´icio"). Planejo o naufrágio do Inaugural, meu blog, que já ostenta no subtítulo o quão imperfeitas já percebo minhas criações, "caderno de exercícios" há lá. Mero exercício. E acho que estou sendo exigente demais. Que a rotina e a disciplina me tragam resultados melhores que espasmos poéticos tão espontâneos quanto incertos; quero encontrar-me nas palavras, de maneira tal a reconhecer-me, sem medo, sem vergonha, e sem arrependimento - pois não planejo o naufrágio do inaugural? E acho que, sim, estou sendo exigente demais. Isso não existe. Digo, é irrealizável. Pode existir enquanto meta, suportarei a frustação de só correr sem atingir? Pelo menos a proposta de diário poupa-me do sofrimento de voltar atrás ou de me contradizer em público - como se fosse público o virtual - e uso da palavra sofrimento como se embaraço já não servisse. Se a vida fosse uma linha esticada e nós representassem os momentos em que se vive e se retorna a um ponto antes já conhecido - um círculo, um grande aro, a cobra que morde o próprio rabo, a chegada ao ponto de partida, substituídos pela ida e vinda de um nó, pois que a vida em linha é tal que 24 horas de uma situação assim não passa de um nós dos mais apertados -, sinto que minha linha seria um emaranhado de nós sobre nós, um novelo por assim dizer, porque, percebo, essa discussão, pular de um blog para um diário, eu já fiz quando pulei do nada para um blog, coisa de abril do ano passado. O que está em pauta é a exposição. Não sei em que nível, em todos eles, talvez. O entrave é mostrar quem sou, descobrir quem sou ou... o entrave é meu? Mesmo assim, creio não adiantar muito eu encontrar um culpado. Que seja. Escrever, pensar, viver, atar e desatar e de novo atar para melhor entender os nós, vale o exercício...

22/07/09


Em uns três momentos no dia lembrei de ter começado um diário, e quis logo desenvolver em palavras os possíveis assuntos. Por que isso? É o segundo dia e tudo ainda é novidade? Daí me pergunto, este é um diário de acontecimentos ou um diário de idéias? E a resposta imediata que me vem é não há por que não atrelar os dois. Viver é isso, fazer e pensar. Ou fazer sem pensar. Ou pensar e não fazer. Mas sempre ação e atuação; que por atuar se entenda fingir, pois que a ação é o fato, a atuação o que se premedita, o pensamento pois. É um mal isso meu de tentar ser absoluto. Às vezes não quero deixar as coisas serem do jeito que elas querem ser. E nem sei bem se isso se aplica ao assunto, mas é como eu quisesse "domar" o diário, como se um diário não fosse simplesmente isso de escrever coisas e sobre as coisas. Tenho sempre que dedicar algumas sinapses, algumas palavras, rascunhar o rascunho, e, pensando bem, isso não é de todo ruim; é uma virtude, talvez. A tudo um pouco atento, uma virtude, é, é.

23/07/2009


Eu conto os dias como quero, é meu o diário. Continuidade à minha maneira, com intervalos; este Dia 3 não é o cheio de acontecimentos dia 24, em que... e não, cheio de acontecimentos foi o dia 23 e de novo agora se dá a pergunta, fatos ou idéias? Porque o que acontece se eu me esquecer desses tão bons acontecimentos, desses dias tão cheios?, gostaria que eles me definissem; gosto que eles me definam, porque, sim, eles me definem. Não que eu esteja a supervalorizar o registro, mas, se estou a registrar, que seja algo de muita valia. Quero lembrar disso, todas essas dúvidas mal remoídas e passageiras e incertas como minhas convicções? (O pior, sim, quero, e quero tudo. E acho lindo tudo isso querer e não poder, e não há nada de errado nisso. Estou muito contente. Estou de novo a admitir que belo é como é, porque é, e não há outra maneira que não a que se deu - porque sim, porque não - e sinto que nada mais que eu escrever fará algum sentido.)


Quando esqueço que escrevo por exercício, percebo que substituída é a pergunta por que escrever por para quem escrevo, e me vejo muito 'eu', com nome, personagem de situações; lugares que de fato existem, meu deus, há outros seres lá!, como dizê-lo? De maneira muito incerta falo por mim: muito me parece errado então falar aqui a voz que não me pertence, como se minha fosse a voz que aqui se faz. Um dia lerei tudo novamente e não sei: não mais saberei ler estes dias escritos, ou ao ler, novamente estarei a escrever? Novamente? (Alguém que não eu conseguiria dar forma, nova voz ao que escrevo? Pelo jeito, a pergunta sempre é "para quem".)

28/07/2009

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Um fiapo bastaria

Vovó fez panos de cama para mim e meu irmão. Bege, quase todinho bege, porque há bolotas coloridas dispersas, poucas. As bolotas coloridas são retalhos de um lençol antigo de que me lembro bem. Era fininho e sedoso de um jeito que só lembrar é como sentir. Passo a mão por elas e o vejo reconstruído à minha frente ou em meu redor.

Em geral, resgata-se da memória, como duma colcha de retalhos, o registro fragmentado que um objeto qualquer nos obriga a revisitar. Vovó presenteou-me com poética: o objeto, este sim colcha de retalhos, remonta em mim inteiriça lembrança.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Para num domingo

Domingo a se desenrolar ou já todo esticado? Ainda enrolado estou eu nos meus lençóis. 'Vai dar tempo?'. Essa pergunta me vem e eu a interpreto como aquela outra, 'Vai dar samba?'. Se o tempo não para, ninguém nunca domou a fera, é certo que vai: tempo sempre há. Meu engano me conforta. Estico-me, enrolo-me, fecho os olhos. Vai dar samba.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Duas vezes o mesmo assunto

Duas perguntas me engasgam. Apertam-me o pescoço, uma de cada lado, em xis: como tesoura que, num outro plano, sou eu mesmo quem manuseia; para ferir ou para ameaçar; já quase me enxergo, e sinto às vezes que sim, que me vejo, de frente, aproximando o polegar ao indicador, os dois enfiados nos círculos errados do cabo da tesoura, porque sou canhoto. É tesoura, mas bem poderiam ser lanças e mais lanças e espadas e adagas de interrogações tantas que me afligem; mas não, é tesoura, pois que são duas somente: das perguntas laminadas, interrogações tantas, escrevi, sobraram-me os furos, os cortes, os arranhões, as marcas e as cicatrizes; destas duas não, sou Prometeu acorrentado, sinto-as sempre; às vezes, só muito de leve é que me tocam, uma de cada lado do pescoço, pouco as sinto, mas arde-me o vinco - pouco sentir não é não sentir, ardor também é dor; às vezes, tão apertado elas me engravatam, que me beliscam o gogó.

As perguntas são "para quê?" e "para quem?". E um mundo inteiro parece se fazer abrir ao mesmo tempo que se encerra em si mesmo. Falar de amor não é amar. As coisas não poderiam estar mais claras agora. Acabei.

**

Quando esqueço que escrevo por exercício, percebo que substituída é a pergunta por que escrever por para quem escrevo, e me vejo muito 'eu', com nome, personagem de situações; lugares que de fato existem, meu deus, há outros seres lá!, como dizê-lo? De maneira muito incerta falo por mim: muito me parece errado então falar aqui a voz que não me pertence, como se minha fosse a voz que aqui se faz.

Um dia lerei tudo novamente e não sei: não mais saberei ler estes dias escritos, ou ao ler, novamente estarei a escrever? Novamente? (Alguém que não eu conseguiria dar forma, nova voz ao que escrevo? Pelo jeito, a pergunta sempre é "para quem".)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Texto em que tinha de encaixar o trecho "Profundo é o poço do passado".

Se profundo é o poço do passado, ouvir o tilintar das moedas no fundo quando caem não é bom presságio, madame. De certo não é coisa boa, porque, escute, eu disse tilintar, e me falta a palavrinha outra que soa como as coisas que caem na água. Seco está!, minha cara, o poço, e quase lhe chamo minha filha, pois que só me faltou a certeza. Se reparo bem, não é você a moça que me troca os lençóis e me aplica nas veias? Ou a que me traz o lanche? E o almoço, que a que me traz o jantar sei ser outra. Ou são todas uma só? É isso de vocês se vestirem parecido, acabo por não me afeiçoar, embora hoje não esteja vestindo o branco habitual, veste-se como minha mulher se vestia. Mas e não é que tem mesmo alguns traços?, olha, sua boca, os olhos, exatamente os dois são os mesmos, de uma ponta a outra, e se lhe visse as orelhas, não, já lhas imagino, diria nada, diria nada estar mudado, não fosse esse nariz, que está errado, teria de ser como este, feito o meu, sim, não um invejável atributo, de certo, porque não o é mesmo, e não faça troça, mas de mim algo teria de haver, e você tomou-me o nariz, querida. É, é, o que houve com ele? Não acha desaforado visitar o pai como a dizer pai, já nem pareço mais sua filha, a mostrar-se rebelde? Se há tanto não a visse, atrever-me-ia a não gostar. Mas disse algo e eu em resposta enveredei-me nessa confusão; sim, a frase do poço, sim, pois o meu está a esvaziar-se, eu estou a esvaziar-me, acredite, outra vez confundi aquela outra moça que sempre me cuida, cheia de mimos troca-me as fraldas e as medicinas e me traz comida, confudi-a com a minha velha, porque a danada não usava justo a mesma echarpe?, a mesmíssima com que a presenteei quando fomos a Marselha, nunca que eu esperaria encontrar mais alguém com tão fina peça por essas paragens e, vejo que a moda é mesmo uma coisa, a echarpe de que falo é como esta, dê-me, deixe ver, igualzinha à sua. Mas onde estão todos? Não é hoje o dia, já não é este o horário? Estas minhas condições, eu estou a esvaziar-me, acredite, já bem sei o que direi quando elas chegarem, a tal frase do poço, direi para pouparem as moedas, que já não compensa atirá-las a mim, pedra dura e lisa, moça, ouve-se o tilintar, a memória me é um diabo, escapa-me, sobra-me uma poça ou outra, um enlameado de recordações, mas nada que valha uns francos saltitantes. Mas, olhe, vejo a porta entreaberta, afaste, quero ver, ora, quem vem ali?, meu nariz! Filha! Falávamos aqui de você, querida, e não me olha assim, parte-me o coração, não fiz nada de errado. Dizia aqui para sua mãe, minha memória é um poço raso agora, mas cá estou, forte, disposto a cavar e permanecer vivo. Querida, não me olha assim.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Louco

Deitado, quase dormindo, sinto-me varrido; lençóis e tudo ao meu redor, vai-se tudo... a areia me cobre e estou então entre dunas e sol. Com medo do que me acordou, ergo devagar a cabeça por cima dos ombros. Viro para o lado que o vento sopra - muito sol, a vista dói. De joelhos, sem entender, arranho com força o chão, que sobe com o vento, que aumenta e ergue mais areia, pronto: vejo-me envolto num turbilhão. Estupefato, balbucio um palavrão que não termino: minha careta se congela e, como um enxame sólido, a areia que me circunda invade-me pela boca. E não para. Um interminável soco na cara; pelos olhos e pelo nariz, cada grão com violência...

**

Quanda acaba, o nada. Estou só. Sem cama, sem areia, sem sol. O piso é liso e cinza e se estende para todos os lados. Está o mundo inteiro em mim, se é que já não estava, se é que é mundo o insólito, o sonho besta? Algo me golpeia o estômago, num relâmpago, ao redor tudo escurece, caio de joelhos - ânsia de vômito. Respiro, respiro. Um fio de areia escorrega de minha boca. Respiro fundo - outro golpe - mais areia. Sinto que vai piorar e de súbito, minha boca se escancara e põe para fora de uma só vez meu lençol e a cama feita. Um mundo me pesa no peito.

Quem de longe me visse veria um prédio numa implosão às avessas, do chão se erguer.

**

Respiro. Recompor a paisagem. Recompor a paisagem e voltar a dormir.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Triste

Mantenho o mesmo sorriso, quiçá o mesmo brilho nos olhos. Escondo a todo custo o desejo de curvar-me e tombar a cabeça, arquear os joelhos e dependurar os braços. Queria abaixar-me num movimento fingido de amarrar sapatos mas nem sequer tocá-los, aproveitar a ida para sentar-me e só; contemplar sozinho o chão.

Meu cabelo se achou e não fui eu. Escolheu o melhor formato, o assentamento mais cool, mas minha mão insiste em tocá-lo, bagunçá-lo. Nessa hora o sorriso é desconcertado. Não mais se mostram os dentes. As bochechas se contorcem num des-sorriso que a custo controlo. Os olhos ainda brilham, porque incontidas elas me saem; a todo momento, finjo-me um bocejo - é o sono, é a lente, muita fumaça, será conjutivite? Um cisco ou dois.

Dois.

Minhas roupas ainda brilham, meus pés ainda sapateiam. Há quem diga que sou o rei da Discoteque. Mas é que eles não percebem. Traças desfazem meu disfarce e começam por dentro.

A isso chamam angústia.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Rude

Sou o couro chupado daquele que fui. Sobra-me pele e osso de o que eu era e meus atos ficaram nas carnes que não há mais.

O que me for atribuído mente. Meus olhos escovados não.

Sou dobras na pele seca, sou manchas nas dobras engilhadas.

Corto-me sem sangrar. Um leve talho a se abrir é pele com pele que se desprende. Penso estarem felizes as bordas, que da vida se despedem. Conquistam o que já conquistei. Ocas.

Sou a fumaça dos vários tragos que me ocupam a boca e os dias e em que me disfaço no ar.

Um jovem me oferece lugar no metrô, no ônibus, no meio-fio. Tenho preferência porque estou meio-morto.

Queria ter dito, como que me impacientasse, "Não me pertube o juízo". Mas não me pertuba o juízo. Porque me falta o juízo. Falta-me a falta. Sobra-me todo o resto, justo o que sou.

quinta-feira, 26 de março de 2009

5.Restos

(Sobras de Rascunho)

[o mar] avançava ávido e tremuloso - feito coveiro que como qualquer outro faz seu trabalho, feito pai que incrédulo busca sem querer o corpo de sopro do filho vazio, feito mãe que incrédula nem vai; ou feito filho que quer brincar com bicho morto, baratas e formigas, o inseto que for; feito túmulo vivo que vem, cata e vai. *


é texto que este deveria ser, a versar sobre o avanço - ou recuo - do mar no quebrar de ondas várias e de como ele, agitado, incontido, faz-se onda e se desfaz, mergulhando na areia, para de novo avançar - ou recuar - aos poucos, respigando em nós um pouco do que falaria noutro texto, que é este. A onda, só num instante certeiro é que se percebia a forma espiralada em perfeita configuração. **


* Acompanharia #3 (Ventura).

** Idéia outra para #4 (Fim).


segunda-feira, 23 de março de 2009

Bobo eu

Numa madrugada de banheiro, não me perguntem o que eu lá fazia, uma borboleta insurgiu desvairada e, sem dar-se conta de mim, ao mesmo tempo que me assustando um monte com rasantes desnecessários na orelha, esborrachou-se na lâmpada acima da pia. Fez porque quis, via-se. Porque fez uma, duas, três vezes, quatro e continuou fazendo. Fingidamente fugia e sem demora estatelava-se sem dó mais umas tantas outras vezes.

Ri, quanta tolice. Borboleta boba. Se pousava, por instantes poucos era, pois queimava-se no bulbo e recuava - para em seguida regressar. Muito desejava ir à luz, imagino, mas, se vez após outra queimava-se no bulbo, por que a insistência? Sabia da dor.

E assim zunia, estalava, tropegamente voava, aquietava-se e regressava. Sua reincidente dor eleita.

Mas observei também que, como eu a observá-la, borboleta alguma poderia estar comigo num dia em não madrugada e, ela sim a me observar, risse de como eu me esborracho e insisto e tanto desejo o que me dói.

Da luz que tanto me queima saberia ela mas, atônita, duvidaria ser meu comportamento mera tolice.

Reavaliaria seus limites ao ver os meus: minhas corroídas asas já não podem ser vistas.

terça-feira, 17 de março de 2009

Um Novo Sol em Mim

Quando bem cedo o sol amarelava e a todos assim se fazia mostrar, eu me levantava antes mesmo de acordar. Agora não mais. Levanto-me junto com ele, acordo bem antes de levantar e me levanto tão logo acordado, pois muito de amarelo também eu tenho e muito mais amarelo pretendo ficar.

Amarele você também e se permita ser da cor que for.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Lembrete

Já hoje o céu estava um tanto como pasta de dente daquelas que exalta a proteção anti-cáries, porque em paralelas o azul entrecortava as nuvens. Se o céu fosse verde, seriam tiras verdes no pastoso das nuvens: pasta de dente de maior frescor, de combate ao mau-hálito então.

Acordar pouco depois das cinco não me agrada. Às vezes é fome, às vezes é pesadelo. Às vezes é azia e levanto só para cuspir. Às vezes é sede. Sempre é às vezes algo que me rouba minutos de sono.

Mas compensa ver o sol vindo lá de baixo e longe onde é garantido ser o leste.

O sol nascendo me é um lembrete de que ainda é cedo. De que devo voltar a dormir. E vou sem escovar os dentes.

segunda-feira, 2 de março de 2009

_ Dois milhões de anos de Brasil e nunca que alguém precisou de um negócio desse pra levantar sobranc... os cílios. Aí agora tem essa frescura... curvex... Por que não usa aquele... aquilo, o rímel?
_ brasil tem quinhentos anos.


_ Dois milhões... é Cristo, né?
_ dois mi... é, dois milhões.

domingo, 1 de março de 2009

Freud tentou

Aí o dia amanheceu amarelado. Amarelado quase verde. Porque não era aquele amarelo-sol - amarelo de sol, do sol, por causa do sol - estava muito era nublado. Pareciam as janelas todas com filtro de - qual mesmo aquele chocolate de embalagem dourada? Sonho de valsa? ... Ouro Branco! Pronto. Parecia o mundo revestido com celofane amarelo, ou todos nós de novo crianças a brincar com a embalagem de bombom na cara. Digo, nós, crianças, mas sei que se eu dissesse, ninguém concordaria ou entenderia. Acho que ninguém acordou na mesma hora que eu pra ver. Talvez, mesmo se tivessem acordado. Devo eu ter esse jeito único de ver cor no raiar. Muito a frente do meu tempo, é isso que sou. Mas um dia vão perceber e precisar e dar o merecido valor. Vão dizer "eita, e essa cor ali? entendi não". E haverá quem explique "sabe o armário que guarda o pó de café? o pó em si não é daquela cor à toa...".

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

4.Fim

Guardo cá ainda uma última frase, "só num instante certeiro é que se percebe a forma espiralada em sua mais perfeita configuração", inacabada e sem irmãs; não me veio só, traduziria idéia maior de como tudo a nada vai gradativamente: enquanto vivemos... não prossigo - poucas linhas que foram, foram-me suficiente - já muito falei de morte.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Lento lapidar (sujeito a alterações)

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Clarice Lispector

Dificuldade em continuar obras inacabadas. Textos interrompidos. Idéias dispostas de um jeito que não estou.

Tenho vontade mesmo é de uma hora arrumar tudo, tirar todo o pó. Só me pergunto o que de mim seria.

Se retirássemos todo o pó, nós mesmos não restaríamos.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

3.Ventura

Um peixe morria um pouco à frente. Ele, o único de pé, foi conferir; murchou os lábios afirmativo e voltou.

Nada escapa a uma observação insistente ou, melhor dizendo, sempre algo há de permanecer se são olhos atentos os que averiguam: o mar, onda a onda enchente, parecia querer velar a escamada ovelha que se desgarrou - avançava tremuloso e solene. Onda a onda enchente, vinha, pois que em busca; vinha buscar, para fazer-se de túmulo e oferecer-lhe o que a nós seria um último suspiro: seu último mergulho. Lembra-me agora o céu de um colorido choroso, roxos e cinzas pálidos e profundos e um pesaroso azul. Gotículas várias nos tocavam, levissimamente nos tocavam. Já não ouso dizer o que agora elas me parecem.

_Sim, mas mesmo com aquela tua filosofia lá?
_cara... é. situações e oportunidades moldam o que for. o segredo é não começar. mas... começei já. começaram. comecei. sucumbi. a vida é dura.


_É. Se tá na chuva é pra se molhar.
_melhor assim, ó: na chuva, trovoada é música.
_melhor assim, ó: na chuva, minhas lágrimas ninguém vê.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

2.Constatação

Estávamos à procura do invísível. Estivemos. Ou estamos ainda? De novo divagaria se me embrenhasse por idéias essas do invisível e suas curvas e sua origem. Mas é válida e persistente a interrogativa - mesmo sem me querer perder por longos ramos de idéias outras, fazê-la exposta já desvia o curso do pensar: se não discorro sobre o trajeto, evidencio o brusco arco em cotovelo, donde, percebo, de novo divago. O corpo quieto muito faz executar a mente quando sentado à praia a ver o mar, ou à escrivaninha, praticando o interessante exercício de só sentir: enquanto aqui movem-se o dedos, lá moviam-se os olhos, e viamos: o agitar-se do mar, o fazer-se da onda, seu espatifar-esparramar-se, deixando ao vento o encargo de salpicar-nos com, sim, agora era sabido, gotículas do mar, e o recuo, para que tudo se desse novamente.

_tinha esquecido a borracha. agora vou.
_Ei.
_diz. - Morde os lábios com a cara de quem antecipadamente agradece um "boa sorte".


_Se o papai na volta for passar no supermercado, diz que é pra ele trazer ovo.
_tá.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

1.Vagar

O mar dava lá suas reviravoltas e a onda que banhava a areia numa queda vertical jogava ao ar respingos que nos atingiam os rostos. Gotículas várias nos tocavam e, levissimamente nos tocavam, ela foi quem primeiro notou. Atentos um tanto mais, perscrutamos o mar e o ar - um instante, que agora percebo, antecipei-me quase todo, expus mais do que devia na frase com que iniciei este relato. As danadices do mar, estas todos já esperam, que por culpa da lua, sabemos, vive ele sua eterna indigestão; mas que da onda derradeira, numa queda vertical escrevi, como se pudesse de outra maneira se dar algo que cai, vinha a poeira d'água quase despercebida, isso ainda estávamos por descobrir. Por isso é que ao ar também lançamos suspeitas - um fino sereno seria?, e um motivo para irmos embora. Mas era ainda uma busca. Liamos e reliamos tudo aquilo escrito acima e abaixo da linha lá longe estendida, que nela própria nada havia. Porque talvez sejam mesmo tortas Aquelas em que dizem o certo escrito - o que escrevo enquanto me pergunto o que há de errado em rasurar. E considerando que vemos reto perfeito o horizonte que, em verdade, é todo curva - como curvo também é o plano em que empilhamos um mundo de nós mesmos - e beira de abismo nenhum, o que digo é, com certa paz que de súbito me atinge, escrever é ser, ou o ato de ser, um pouco Deus. Mas fujo-me completamente. Se há muito dito em poucas frases, nada há em tantas outras.