Era noite em Campinas. Saía eu tarde da faculdade. Dia cheio, cabeça cheia; ruminava idéias trágicas sobre a arte de viver a vida*. Verdade é que, há não muito, um passarinho confindeciara-me com a própria vida algo que muito me pareceu importante; algo que bem poderia servir para contra-balancear a angústia que me abatia, mas assim não se deu. Estranhos são os trejeitos da natureza, pois, como se eu precisasse e isso lhe importasse, o mundo animal reservara-me mais uma boa lição. O título denuncia, agora quem papoca é uma minhoca.
Voltava para casa. Ia por uma ruela escura. Cabisbaixo, enxerguei um pequeno graveto no chão, três passos a minha frente. Pensei em nada. Acho que o reflexo patelar falou mais alto e minha amargura só consentiu: "Vai... chuta o filho da puta". Calibrei a canhota. Fiz carreira. Frau! Algo de errado. Senti meu pé escorregar por cima do graveto que, com todas as minhas forças, eu queria era ver rodopiando no ar rumo a Marte. De imediato, virei-me com o espanto de quem tem o mínimo de amor próprio necessário para não sequer cogitar imaginar um pedaço de quase nada da possibilidade de se deixar barato errar o endemoniado do chute que durante três poucas passadas lhe foi toda a razão de existir. "Volta... chuta o filh...". Pensamento interrompido.
Como já se sabe, era uma minhoca. Surpreendi-me. Daí os cosmos, Deus, o universo, aquela patota toda se fez de novo. Mas dessa vez a fatalidade se fazia mais dramática; a minhoca estava ali feito um papel molhado, tatuada no asfalto, porque eu a matei. Morte, gente. Coisa séria. Não, na verdade não, não me atenho a morte em si - porque pequeninos animais a gente mata até querendo (e se fosse eu escrever um texto para cada traça e mosquinha de banheiro que mato, quantas postagens diárias esse blog não iria ter? Resposta: no mínimo 3, em média.) -, o relevante é o exercício do poder.
A morte do pombo se deu por pura e simples obra do acaso; eu vi, solidarizei-me e escrevi um texto - sei que em algum lugar ele deve estar arrulhando e cagando feliz e agradecido. A da minhoca, por puro e simples engano meu; eu, frustrado e sem motivos, fiz
o que fiz, sem querer, e isso não há como ser desfeito. Fico pensando se ela também não estava em regressa trajetória para o lar, tão problemática quanto a minha, mortificada por suas anelídeas questões, quando resolvi chutá-la. E este é o ponto: se éramos iguais em vida, o que me faz ser maior e melhor? (Olha só, acabo de matar um mosquitinho que se atreveu pousar na barra de espaço.) O fato é que simplesmente sou. E isso me permitiu lhe tirar a vida como quem chuta um graveto (exatamente assim). Pode parecer uma idéia pequena, mas não, e é justamente disso que ela trata, escala. Do diminuto ao mais grandão, estamos todos no mesmo barco, o que nos difere é quem pode chutar ou ser chutado.
Quando deixei de fitar a minhoca, olhei para o alto como se procurasse o que viria por fim amassar-me também. Enfim, se aqui escrevo, é porque nada veio. Sou muito agradecido por isso. No restante do percurso, não lembro se busquei desviar de todo e qualquer suposto graveto que me cruzasse o caminho. Ou se chutei todos eles.
*Assim dizendo, até parece que eu tenho problemas grandes além da conta. Não, não. É que sou reclamão; problemas cotidianos já me são grandes além da conta.