(Vestibular simulado, prova de redação. Isso foi no fim de agosto. A proposta era: crônica literária, com narrador observador, em que se evidencie o "bom-samaritano" moderno - um cara que, nos dias atuais, "faça o bem sem olhar a quem". Por motivos mundanos, teria eu pouco mais de uma hora para fazer o texto. Com inaugurálias me rondando a cabeça, aprumei as idéias que me vieram e vislumbrei na palavra "literária" um trunfo. Receei que 30 linhas não me fossem suficientes e já na metade do rascunho constatei que de fato não seriam. Mas não podia parar. Adaptei a história para que ficasse igualmente expressiva e a fuga do tema me foi inevitável. O narrador-observador se transformou num narrador-personagem-que-observa e o mote "fazer o bem se olhar a quem" ficou pela metade.
O texto que segue é essa redação com uma palavra alterada, outra em lugar modificado e oito novas acrescentadas - é o danado mal da edição.)
Certa estatística diz que passamos boa parte de nossas vidas dormindo. Presumidas oito horas diárias. Intenciona-se vender colchões, naturalmente. Mas utilizemos do mesmo recurso. Extendamos o tempo de tarefas corriqueiras para um vida inteira. Quanto tempo, por exemplo, não passamos dentro de um automóvel? Mais!, quanto tempo não passamos parados ao semáforo, à espera de verde luz - verde cor da esperança - que nos permita ir. "Seguir".
Dói-me pensar nisso. Tanto que busco alternativas para tais momentos - não mais prostituo meus ouvidos com as repetitivas e repetidas e repetidoras e repetirritantes músicas das rádios. Não que eu tenha inventado um novo "tetris". Não, não. O que faço é um bocadinho mais simples. Procuro observar. Assim simples. Observar. Desprendo-me do cinto de segurança, meto a cabeça para fora do carro, apóio-a nos braços, estes também do lado de fora, e pronto!, está montado o aparato. Refaço-me criança numa janela e eis que chega o mais difícil: despir-se dos preconceitos, dos filtros viciados que temos no olhar e no sentir.
Mas estou pegando o jeito. Não fecho as janelas, não travo as portas; olho o pedinte nos olhos e, se nada dou, digo "perdão", jamais "não tenho" - estaria a mentir. O cara do rodinho, boa-gente, já sei até o nome, "Marquinhos". A velhinha tem duas netinhas e problemas no coração. "Dona Amélia" carrega consigo cansada receita médica.
Um catador de latinhas. Maurício. Uma camisa suja de dar dó vestia. Igualmente sujo estava. Resolvo dizer o que significava a frase nela escrita. "Born to party". Nascido para festejar. Ele me pergunta o que é "festejar". "Fazer festa", digo. Ele sorri com melancolia. Eu não consigo dizer mais nada. A mensagem de otimismo que eu queria passar se afundou num mar de lágrimas dentro de mim. Lágrimas que não despejei. Afundaram-se em si, levantando e espalhando espumas de ironia.
Feitoironiaessadeescrever30linhasdistantesdotemapropostoepoucomeimportar. Amém.
E, sim, a nota foi zero.
O texto que segue é essa redação com uma palavra alterada, outra em lugar modificado e oito novas acrescentadas - é o danado mal da edição.)
Certa estatística diz que passamos boa parte de nossas vidas dormindo. Presumidas oito horas diárias. Intenciona-se vender colchões, naturalmente. Mas utilizemos do mesmo recurso. Extendamos o tempo de tarefas corriqueiras para um vida inteira. Quanto tempo, por exemplo, não passamos dentro de um automóvel? Mais!, quanto tempo não passamos parados ao semáforo, à espera de verde luz - verde cor da esperança - que nos permita ir. "Seguir".
Dói-me pensar nisso. Tanto que busco alternativas para tais momentos - não mais prostituo meus ouvidos com as repetitivas e repetidas e repetidoras e repetirritantes músicas das rádios. Não que eu tenha inventado um novo "tetris". Não, não. O que faço é um bocadinho mais simples. Procuro observar. Assim simples. Observar. Desprendo-me do cinto de segurança, meto a cabeça para fora do carro, apóio-a nos braços, estes também do lado de fora, e pronto!, está montado o aparato. Refaço-me criança numa janela e eis que chega o mais difícil: despir-se dos preconceitos, dos filtros viciados que temos no olhar e no sentir.
Mas estou pegando o jeito. Não fecho as janelas, não travo as portas; olho o pedinte nos olhos e, se nada dou, digo "perdão", jamais "não tenho" - estaria a mentir. O cara do rodinho, boa-gente, já sei até o nome, "Marquinhos". A velhinha tem duas netinhas e problemas no coração. "Dona Amélia" carrega consigo cansada receita médica.
Um catador de latinhas. Maurício. Uma camisa suja de dar dó vestia. Igualmente sujo estava. Resolvo dizer o que significava a frase nela escrita. "Born to party". Nascido para festejar. Ele me pergunta o que é "festejar". "Fazer festa", digo. Ele sorri com melancolia. Eu não consigo dizer mais nada. A mensagem de otimismo que eu queria passar se afundou num mar de lágrimas dentro de mim. Lágrimas que não despejei. Afundaram-se em si, levantando e espalhando espumas de ironia.
Feitoironiaessadeescrever30linhasdistantesdotemapropostoepoucomeimportar. Amém.
E, sim, a nota foi zero.
3 comentários:
Essa frase final eu explico. Acabei o texto ciente de ter fugido da proposta. "Ironia" encravou-se no fim da 29ª linha. Pensei "aí não, cabe mais uma". Quis então ressaltar que de propósito aquilo tudo fizera e que, sim, pouco me importava*, porque as idéias desse texto, especialmente as do final, estavam sufocadas em mim - ou me sufocando. Não sei. Precisavam sair. E sairam. Sim, a frase é atrevida de um jeito que não muito me orgulho, mas ela precisava não ter espaços entre as palavras para tudo caber (e para fazer graça também, claro - a intenção é sempre essa). E coube que sobrou. Eu, imaginem, pura adrenalina, queria uma só palavra mais para "fechar" a prova. Pensei em "fim", mas não, seria muita (mais ainda) petulância. Então, veio-me, feito bênção, como que para celar a prece de uma linha em divino ponto final, palavra de 4 letras outra não se ajustaria melhor: "Amém".
Então explica querido, como consegue ser assim tão puro o teu fazer de narrador?
"Refaço-me criança numa janela e eis que chega o mais difícil: despir-se dos preconceitos, dos filtros viciados que temos no olhar e no sentir."
Num aguento não.
muito obrigado pela homenagem como o cara do rodinho! hehehe
Postar um comentário