quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Espelhos e Olhos fechados

'Arte pela arte' é como crer no corpo como prisão do espírito. Libertar-se seria negar o mundo que se alicerça em imagens. Mas impraticável é (mesmo na minha mais praticável utopia que, descubro, não é tão praticável assim). Se o vento me levanta os cabelos, a mão naturalmente vai e afaga. 'Arte pela arte' se faz no cabelo despenteado sem querer.

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'Arte pela arte' é admiração intensa, expressão individual. Independe de alheia aceitação. É o poema feito que não se mostra a ninguém. Por timidez, por receio. Do outro. De si. E feito o som que faz aquilo que cai e ninguém ouve, arte se faz ali - em cadernos fechados, em velhas gavetas, em papéis avulsos, nas cestas de lixo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Incrédulo

Entendi. O passo único é acreditar. O resto é ladeira a baixo.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Joga 10

(Vestibular simulado, prova de redação. Isso foi no fim de agosto. A proposta era: crônica literária, com narrador observador, em que se evidencie o "bom-samaritano" moderno - um cara que, nos dias atuais, "faça o bem sem olhar a quem". Por motivos mundanos, teria eu pouco mais de uma hora para fazer o texto. Com inaugurálias me rondando a cabeça, aprumei as idéias que me vieram e vislumbrei na palavra "literária" um trunfo. Receei que 30 linhas não me fossem suficientes e já na metade do rascunho constatei que de fato não seriam. Mas não podia parar. Adaptei a história para que ficasse igualmente expressiva e a fuga do tema me foi inevitável. O narrador-observador se transformou num narrador-personagem-que-observa e o mote "fazer o bem se olhar a quem" ficou pela metade.

O texto que segue é essa redação com uma palavra alterada, outra em lugar modificado e oito novas acrescentadas - é o danado mal da edição.)


Certa estatística diz que passamos boa parte de nossas vidas dormindo. Presumidas oito horas diárias. Intenciona-se vender colchões, naturalmente. Mas utilizemos do mesmo recurso. Extendamos o tempo de tarefas corriqueiras para um vida inteira. Quanto tempo, por exemplo, não passamos dentro de um automóvel? Mais!, quanto tempo não passamos parados ao semáforo, à espera de verde luz - verde cor da esperança - que nos permita ir. "Seguir".

Dói-me pensar nisso. Tanto que busco alternativas para tais momentos - não mais prostituo meus ouvidos com as repetitivas e repetidas e repetidoras e repetirritantes músicas das rádios. Não que eu tenha inventado um novo "tetris". Não, não. O que faço é um bocadinho mais simples. Procuro observar. Assim simples. Observar. Desprendo-me do cinto de segurança, meto a cabeça para fora do carro, apóio-a nos braços, estes também do lado de fora, e pronto!, está montado o aparato. Refaço-me criança numa janela e eis que chega o mais difícil: despir-se dos preconceitos, dos filtros viciados que temos no olhar e no sentir.

Mas estou pegando o jeito. Não fecho as janelas, não travo as portas; olho o pedinte nos olhos e, se nada dou, digo "perdão", jamais "não tenho" - estaria a mentir. O cara do rodinho, boa-gente, já sei até o nome, "Marquinhos". A velhinha tem duas netinhas e problemas no coração. "Dona Amélia" carrega consigo cansada receita médica.

Um catador de latinhas. Maurício. Uma camisa suja de dar dó vestia. Igualmente sujo estava. Resolvo dizer o que significava a frase nela escrita. "Born to party". Nascido para festejar. Ele me pergunta o que é "festejar". "Fazer festa", digo. Ele sorri com melancolia. Eu não consigo dizer mais nada. A mensagem de otimismo que eu queria passar se afundou num mar de lágrimas dentro de mim. Lágrimas que não despejei. Afundaram-se em si, levantando e espalhando espumas de ironia.

Feitoironiaessadeescrever30linhasdistantesdotemapropostoepoucomeimportar. Amém.




E, sim, a nota foi zero.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Dialogam

A pele dela que me disse, estava com frio. não a conhecia, não a conheço, mas muito bem eu sabia que estava. A pele dizia. e eu bem sabia, porque via. via seus pelos eriçados, os poros sobressaltados; Seu corpo dialogava com o meu olhar. e eu via o frio que ela sentia. não que eu a tenha tocado ou sentido do frio e presumido que estivéssemos ambos a sentir. eu simplesmente vi.

***


Caminhava apressado quase. À direita a praça, à esquerda o comércio, o banco num prédio alto à frente - pessoas, esquinas, caminhos. Um cheiro. Respirava sem compasso, o cheiro me arrebatou; agarrei-lhe num longo e pleno inspirar. Caminhei ainda um, dois, lentos, três passos antes de abrir os olhos - fecharam-se como que a procura de imagens na mente, dentro. Vivo algo senti. Cores, vozes, tudo o que me veio, o cheiro que trouxe. Procuro fora, prédios, esquinas, fétidos e fétidas e cheiro nenhum. Pessoas, caminhos. De novo lembro. Sigo. Entorpecido. Quase.

***


Precisava proteger os ouvidos. Papeizinhos, perfeito. Mas sujos e riscados, exigiria certo sacrifício. Devidamente amassados: boca. Amargo. E muito salivei. Tão ruim quanto mastigá-los e lhes sentir o sabor era saber que teria de engolir a papa que restasse. O pior passado, imprenso aos orifícios essas gomas e me escorrem nos dedos excessos de saliva. Não querendo enxugar nas roupas, decido por dar-lhes o destino nativo e: mãos aos lábios - com a língua, paradoxo, secá-las-ia. Fluida brincadeira, calça-me luvas o odor, o odor!? - resgata-se viva em mim a sensação de um beijo teu. (Ouvidos tapados, o intenso barulho soa longínquo e o silêncio me encapsula.) É odor este o mesmo daquele que me persistia na pele, na face, no corpo, onde tu osculasse? Sim, é. Mas a baba minha...? Porque em teus beijos, percebo, lambuzava-me de mim, comigo; e teu hálito, em verdade, emprestava-se do meu.

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sei do teu sorriso quando ouço o chiado de um leve soprar entredentes. (há muito não te vejo, mas bem sei dos teus olhos, tua boca, bochechas e todo o resto quando em gargalhada estás desfeita - refeita - perfeita). ao telefone, podia ouvir e lembrar. agora, lembro do que ouvia, só daí lembro deveras. não sinto tua falta, porque estás comigo na lembrança - mas mais distante a cada vez. em não muito tempo, estarei vendo o que me lembra do que ouvi quando em teu toque em meus lábios um perfume....

Sinto tua falta.