Texto em que tinha de encaixar o trecho "Profundo é o poço do passado".
Se profundo é o poço do passado, ouvir o tilintar das moedas no fundo quando caem não é bom presságio, madame. De certo não é coisa boa, porque, escute, eu disse tilintar, e me falta a palavrinha outra que soa como as coisas que caem na água. Seco está!, minha cara, o poço, e quase lhe chamo minha filha, pois que só me faltou a certeza. Se reparo bem, não é você a moça que me troca os lençóis e me aplica nas veias? Ou a que me traz o lanche? E o almoço, que a que me traz o jantar sei ser outra. Ou são todas uma só? É isso de vocês se vestirem parecido, acabo por não me afeiçoar, embora hoje não esteja vestindo o branco habitual, veste-se como minha mulher se vestia. Mas e não é que tem mesmo alguns traços?, olha, sua boca, os olhos, exatamente os dois são os mesmos, de uma ponta a outra, e se lhe visse as orelhas, não, já lhas imagino, diria nada, diria nada estar mudado, não fosse esse nariz, que está errado, teria de ser como este, feito o meu, sim, não um invejável atributo, de certo, porque não o é mesmo, e não faça troça, mas de mim algo teria de haver, e você tomou-me o nariz, querida. É, é, o que houve com ele? Não acha desaforado visitar o pai como a dizer pai, já nem pareço mais sua filha, a mostrar-se rebelde? Se há tanto não a visse, atrever-me-ia a não gostar. Mas disse algo e eu em resposta enveredei-me nessa confusão; sim, a frase do poço, sim, pois o meu está a esvaziar-se, eu estou a esvaziar-me, acredite, outra vez confundi aquela outra moça que sempre me cuida, cheia de mimos troca-me as fraldas e as medicinas e me traz comida, confudi-a com a minha velha, porque a danada não usava justo a mesma echarpe?, a mesmíssima com que a presenteei quando fomos a Marselha, nunca que eu esperaria encontrar mais alguém com tão fina peça por essas paragens e, vejo que a moda é mesmo uma coisa, a echarpe de que falo é como esta, dê-me, deixe ver, igualzinha à sua. Mas onde estão todos? Não é hoje o dia, já não é este o horário? Estas minhas condições, eu estou a esvaziar-me, acredite, já bem sei o que direi quando elas chegarem, a tal frase do poço, direi para pouparem as moedas, que já não compensa atirá-las a mim, pedra dura e lisa, moça, ouve-se o tilintar, a memória me é um diabo, escapa-me, sobra-me uma poça ou outra, um enlameado de recordações, mas nada que valha uns francos saltitantes. Mas, olhe, vejo a porta entreaberta, afaste, quero ver, ora, quem vem ali?, meu nariz! Filha! Falávamos aqui de você, querida, e não me olha assim, parte-me o coração, não fiz nada de errado. Dizia aqui para sua mãe, minha memória é um poço raso agora, mas cá estou, forte, disposto a cavar e permanecer vivo. Querida, não me olha assim.
Se profundo é o poço do passado, ouvir o tilintar das moedas no fundo quando caem não é bom presságio, madame. De certo não é coisa boa, porque, escute, eu disse tilintar, e me falta a palavrinha outra que soa como as coisas que caem na água. Seco está!, minha cara, o poço, e quase lhe chamo minha filha, pois que só me faltou a certeza. Se reparo bem, não é você a moça que me troca os lençóis e me aplica nas veias? Ou a que me traz o lanche? E o almoço, que a que me traz o jantar sei ser outra. Ou são todas uma só? É isso de vocês se vestirem parecido, acabo por não me afeiçoar, embora hoje não esteja vestindo o branco habitual, veste-se como minha mulher se vestia. Mas e não é que tem mesmo alguns traços?, olha, sua boca, os olhos, exatamente os dois são os mesmos, de uma ponta a outra, e se lhe visse as orelhas, não, já lhas imagino, diria nada, diria nada estar mudado, não fosse esse nariz, que está errado, teria de ser como este, feito o meu, sim, não um invejável atributo, de certo, porque não o é mesmo, e não faça troça, mas de mim algo teria de haver, e você tomou-me o nariz, querida. É, é, o que houve com ele? Não acha desaforado visitar o pai como a dizer pai, já nem pareço mais sua filha, a mostrar-se rebelde? Se há tanto não a visse, atrever-me-ia a não gostar. Mas disse algo e eu em resposta enveredei-me nessa confusão; sim, a frase do poço, sim, pois o meu está a esvaziar-se, eu estou a esvaziar-me, acredite, outra vez confundi aquela outra moça que sempre me cuida, cheia de mimos troca-me as fraldas e as medicinas e me traz comida, confudi-a com a minha velha, porque a danada não usava justo a mesma echarpe?, a mesmíssima com que a presenteei quando fomos a Marselha, nunca que eu esperaria encontrar mais alguém com tão fina peça por essas paragens e, vejo que a moda é mesmo uma coisa, a echarpe de que falo é como esta, dê-me, deixe ver, igualzinha à sua. Mas onde estão todos? Não é hoje o dia, já não é este o horário? Estas minhas condições, eu estou a esvaziar-me, acredite, já bem sei o que direi quando elas chegarem, a tal frase do poço, direi para pouparem as moedas, que já não compensa atirá-las a mim, pedra dura e lisa, moça, ouve-se o tilintar, a memória me é um diabo, escapa-me, sobra-me uma poça ou outra, um enlameado de recordações, mas nada que valha uns francos saltitantes. Mas, olhe, vejo a porta entreaberta, afaste, quero ver, ora, quem vem ali?, meu nariz! Filha! Falávamos aqui de você, querida, e não me olha assim, parte-me o coração, não fiz nada de errado. Dizia aqui para sua mãe, minha memória é um poço raso agora, mas cá estou, forte, disposto a cavar e permanecer vivo. Querida, não me olha assim.